sábado, 24 de novembro de 2012

A REVOLTA DA CACHAÇA (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa (*)
Rangel Alves da Costa

A REVOLTA DA CACHAÇA

Já próximo ao meio-dia de mais um dia sertanejo, momento preferido pelo caboclo para se achegar ao pé do balcão para tomar uma talagada, a primeira de outras tantas, eis que um cabra olhou pro pé de Miúdo e sentenciou de modo alarmante:

“O mocotó do pé tá inchado e é de cachaça, conheço de longe. Mas pinga da boa não deixa ninguém assim não, de jeito nenhum, somente quando ela é aguada. Miúdo foi enganado, serviram a ele cachaça batizada, misturada com água. Você lembra onde pode ter bebido a pinga assim, Miúdo?”.

Espantado, o pobre do Miúdo não sabia nem o que responder. Estava realmente sentindo uma inchação diferente na curvatura dos pés, mas sem doer deixava pra lá. Contudo, o problema era saber onde tinha sido enganado pelo bodegueiro, vez que bebia em toda birosca que encontrava.


Diante do noticiado e já estando a birosca repleta de cabra pedindo uma e mais uma, logo Zefio tomou a palavra e pedindo um instantinho de atenção começou a falar, mas logicamente depois de virar mais uma talagada de umburana adormecida por três dias:

“Isso que fizeram com Miúdo é muito grave e não pode ficar assim não. Se o safado do vendeirim fez isso com ele, misturando água na pinga por debaixo do balcão, pode muito bem fazer o mesmo com qualquer um de nós. E se a gente não procurar saber logo quem foi esse dono de botequim safado, mais tarde todo mundo pode aparecer de pé inchado. Por isso acho melhor a gente começar agora mesmo procurar quem fez isso. E isso a gente só vai saber indo de boteco em boteco”.

A cada palavra de Zefio os ânimos ficavam cada vez mais exaltados entre todos. Talvez por causa das doses já viradas gogó abaixo, mas a verdade é que prometiam não deixar barato aquilo de jeito nenhum, pois não admitiam que um safado de um vendeirim quisesse enganar uma classe tão respeitada como é a dos amigos de pé de balcão, os honrados cachaceiros.

Um falou em ir buscar uma espingarda antes de saírem, outro disse que bastava a faca peixeira que já levava na cintura, já outro prometia quebrar tudo que encontrasse no boteco onde fosse encontrada a maldita aguada. A coisa estava realmente feia, uma revolta danada, coisa de se fazer guerra pra acabar mundo.

O dono do boteco onde estavam, bicho matreiro e cheio de presepada, tremia dos pés à cabeça ao ouvir aquelas deliberações. Olhando por baixo, um pouco afastado do balcão, implorava em silêncio, rogava por tudo na vida que os revoltosos saíssem logo dali e fossem à caça de culpado em outro lugar. Já pensou se imaginam que ele estava batizando cachaça?

Mas tão aperreado que estava, tomado de uma repentina dor de barriga de não acabar mais, acabou fazendo o que jamais tinha feito na vida: ofereceu uma rodada da boa como incentivo para que fossem logo investigar o caso da enganação e castigar o culpado por aquela afronta descomunal aos adeptos da pinga.

Assim que a turba revoltosa virou a pinga e saiu porta afora, o safado do bodegueiro correu pra pegar uns litros cheios de cachaça que estavam estrategicamente colocados debaixo do balcão. E virou por terra, na parte dos fundos do barraco, cada um dos cinco litros. Depois, já aliviado, tomou uma dose de angico sem mistura e disse a si mesmo que por pouco não havia sido descoberto enganando a clientela.

Enquanto isso, já enveredando pelos becos do lugarejo, o grupo revoltoso seguia para dar início à desenfreada procura pela cachaça maldita, pela pinga batizada, aquela que era só beber e não demorar muito pro mocotó inchar. Assim, os indignados entraram no primeiro boteco e experimentaram quase todo tipo de cachaça misturada com raiz de pau. Comprovaram ser da boa e foram em frente.

E foram passando de um a um, de boteco a birosca, e sempre bebendo, mas já sem qualquer noção da qualidade da pinga. Já estavam bêbados, cambaleantes, trocando palavras, e com um ou outro já tendo ficado devidamente adormecido pelos cantos por onde estiveram. E nesse indescritível percurso o último bêbado ainda de pé conseguiu retornar ao primeiro boteco onde tudo começou.


Lá dentro, desprevenido, ao ver o cabra chegando com a cara mais que estranha, retorcida, o safado vendeirim tomou um susto que quase bota os bofes pela boca. E imediatamente pensou: É agora que vou morrer, pois descobriram que sou eu quem batizava a pinga. E procurou um jeito a fazer. E o que lhe veio à mente foi logo confessar tudo e pedir perdão, dizendo que nunca mais misturaria água na cachaça nem com pedido de padre.

Assustado demais, não percebendo que o outro estava totalmente bêbado, se ajoelhou, contou tudo e só faltou chorar. Mas em seguida ouviu: “Não tenho mais um conto no bolso, mas será que você poderia me servir uma dose, mesmo que venha misturada com água?”
  
(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos eguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Bulamarqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE. 

Poeta e cronista
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